O chão-que-não-era-chão tremia sob seus pés, indiferente aos bocejos resmungados dos passageiros que lançavam olhares enublados pelo sono através das janelas embaciadas de respirações conjuntas. No exterior, o ar gelava os dedos, enquanto ele tentava discernir, serenamente, por entre a pré-madrugada. As notas que se elevavam sobre a cidade iludiam a escuridão adormecida, e nada mais havia no céu nocturno-matinal que a lanterna-farol ignorada, com os olhares postos no raiar da alva celestial em ardentes chamas de arco-íris.
E, nesse despertar de sensações ainda imersas no entorpecer dos sentidos pouco claros, embriagados pelo pudor de obrigações rotineiras, acreditava ser o único a olhar a brilhante e redonda lua. Com a clara nitidez da arrogância bem definida pela imaginação egocêntrica, mirava a invulnerável mas cansada donzela cercada pelos seus aposentos de ébano estrelado. E se fosse o único? E se todos os outros habitantes da ruidosa cidade tivessem os olhos pregados ao chão numa angústia de não querer olhar para cima, por ser demasiado alto? Ou se esperassem apenas o dealbar do dia, e fixassem o oriente com suas orbes semi-inconscientes, alçando a vista onde apenas esperava l’avenir? Talvez fosse, então, aquele a quem a lua retribuía o olhar ofuscante, pleno da sua angelicalidade demoníaca, pois a sua auréola hipnotizava o seu único espectador. Quando desaparecia por segundos, ocultada por detrás das construções de betão que irrompiam como cinzentas flores silvestres, não tardava a reaparecer, para deleitoso êxtase de seu mirone.
E os centros comerciais acordavam com a cidade, e a cidade eram os centros comerciais, com suas gigantescas áreas de consumo de indiferenças em troca de satisfações momentâneas. Na sua frente corriam os apressados e os atrasados e os que apenas o julgavam estar, bem como palmilhavam, a passo lento, os que se delongavam de propósito para tardar a chegar a seus destinos. Sim, faltava pouco para o dia se levantar de vez, apesar de já tarde, comparado com a fervilhante metrópole.
De facto, a prateada lua afastava-se cada vez mais, descendo no céu cada mais claro. A sua superfície dir-se-ia encanecida, e desvanecia-se, empalidecendo conforme os segundos a traspassavam qual lanças que não vertiam sangue. Ou talvez fosse ela que não pudesse sangrar.
Não era infelicidade o que o seu admirador sentia, devido à sua partida. Enquanto ela ali estivesse, não lhe era inevitável a separação. Estremecia – os solavancos interrompiam as conversas que escutava desatentamente, sem acreditar na veracidade das palavras ou nas músicas de quem não era preocupação a interrupção do silêncio colectivo.
A maré de passageiros sobe e desce, sem qualquer aparente ligação à lua nem destinos entrecruzados pela falta de coerência entre todos. E acontece ser a afluência de hipocondríacos que antecede o chegar, pelo que os atrasos são desculpáveis apenas por si. É chamado, esperado desesperadamente que esteja pronto.
Assim, numa despedida apressada da já semi-desaparecida lua, corre no frio da manhã, sob o céu, agora já de um azul resplandescente, interrompendo o suave roçagar da neblina que cobre as ervas daninhas dos trilhos que surgem na urbe.
Sem comentários:
Enviar um comentário