quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Metamorfose.

Era noite, como é sempre noite quando os dias são curtos e nunca chegam para nos aquecer por dentro. As luzes da cidade viva e pardacenta brilhavam mais do que as estrelas, mais do que o luar de uma lua redonda que quase nem se via, ocultada por prédios de andares resguardados por estores por entre cujas frestas escapavam, fugidios, subtis e iluminados rastos de vida, rastos de luz. As árvores restolhavam como se cobertas de milhares de pássaros que agitavam as suas asas; mas os pássaros haviam partido com o calor e os que restavam resguardavam-se do frio da noite. Deles apenas restavam sombras balançantes no chão calcetado que lembravam agoiros de corvos de olhos inteligentes e traiçoeiros.

Mas eram essas as sombras que amavas, e esses os corvos que te faziam companhia nas horas vazias da noite - vazias como te julgavas. Eram essas as horas em que te expandias, em que fugias das tuas prisões terrenas e te evadias com os raios fracos de luar e os brilhos difamados das estrelas que não se viam, mas que tu vias. E, para ti, não existiam os prédios nem as árvores descascadas e denegridas pela noite, nem as janelas que olhavam sobre o mundo dos outros, descaradamente. Não existiam as cordialidades e as formalidades deslumbrantemente repugnantes que te atrocidavam durante o dia e te desfaziam em pedaços imperfeitos de ti. Não havia a indignada maldição de outros que não te conheciam, ou que não te queriam conhecer, e afamadamente se ocupavam das suas vidas descoradas.

Aspiraste o ar sombrio e deleitante dos ditos obtusos sonhos e memórias que explodiam pelas janelas alheias, e, de olhos cerrados, sentiste a ignorância de não saberem mais que o que lhes era segredado por detrás de portas entreabertas e vãos de escadas cobertos de pó. E houve uma altura em que verdadeiramente olvidaste as indecências julgadas decentes do dia-a-dia, essas condolências corriqueiras que te faziam sentir vã, e desmanchaste-te em centenas de aves - corvos, diria, se tivesse visto - que pairaram na noite para o longe, para longe da infelicidade ou dos arbítrios do Fado que nunca quer se não mal a quem ao seu encargo se encontra.

E de vazio em tudo te tornaste.

[Para a excelente pessoa [link].]

2 comentários:

Leto of the Crows - Carina Portugal disse...

Hum... e aqui está! É vossa senhoria com um preconceito contra o vazio, e o Zé com um preconceito contra a "não existência" e o "nada".

Mas fico mui agradecida por tão belo e requintado texto ^^
Que os corvos voem além céus e universos!

Um beijinho muito grande ^^

Kath disse...

Na, não é um preconceito contra o vazio. Se não houvesse o vazio também não havia nada. É contra sentires-te um vazio.