terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Palavras de Cinza.

Ficámos para trás, olvidados,
Esboçados sentidos expoentes.
Éramos então importantes,
Restámos abandonados;
Somos agora pecados,
Manchas em imaculados inocentes.

Contámo-nos contados
Relidos em indelicada impaciência.
Fomos resquícios de vidas,
Agora somos enjeitados,
Na lareira ardemos, queimados,
Gasta está nossa breve sapiência.

Pois que de nós resta, se restamos?
Fomos o agora pela mão,
Pela chama o antigo somos.
Enegrecemos, encarquilhamos,
Agora cinzentos, esbranquiçamos.
Isentos do mundo, guardados no coração.

E somos palavras de cinza.

[Colinas, 23/12/08]

domingo, 7 de dezembro de 2008

Amores de mim.

Chamo pelo cheiro a chuva,
Enxotando o estio para a distância.

Chamo chilreios de gotas,
Escorrendo pelas janelas minhas.

Chamo, chamo por elas,
Deslizando cheias de sons.

Chamo e espero, espero e chamo,
E elas tardam mas chegam.

E chegam cheias de cheiros,
Cheiros e chilreios e chamam-me.

Nestas danças de enxurradas
Vivemos despertando cadeias chuvosas.

Até chegar o sol e fecundar a chuva,
Pais de arco-íris resplandecentes.


[Colinas, 07/12/08.]

[link]

sábado, 6 de dezembro de 2008

'Sperança.

De onde vens?, pergunto eu,
Mas não há resposta alguma.
Onde jaz agora a ‘sperança,
Viva em tempos de bonança,
Já vida não resta, nenhuma,
E até o negro morreu.

Mas quedo-me aguardando,
E o corpo da morta fito.
E se algum dia soube viver,
Soube ser mais do que ser,
Tal longe ficou agora, mito,
E despojada me deixo chorando.

Não há cores restantes,
E o cinzento Senhor se clama.
É contradição que persiste,
No seu trono de névoa resiste.
Dias há em que por mim chama,
E de mim olvido o que era antes.

Porém, esgota-se o som cantado,
Ficam os ásperos roçagares do luto.
E os corvos grasnam imprecações;
Antes fossem pragas, maldições.
Oh, ‘sperança, minha vida pela tua comuto,
Devolve pois o mundo ao meu mundo amado.

[link]

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Eau de Toilette.

E enquanto vagueio, rumo definido, aguardo o que já se pressente. O que os meus olhos não vêem, cegos pelo que ainda não chegou, e o meu corpo ainda não sente, mas antecipa, efervescendo de deleite. Generalizo, e digo que é sempre assim, que, primeiro que sentir, ver ou saborear, me chega este aroma a ti, meu amor, minha chuva. Mas mentiria. Porque o teu perfume paira mais quando já te esfumaste - ou escorreste serpentinamente - e resta o sabor do teu cheiro.

Sabes-me, poderei arriscar, a dias de Inverno que tanto me desejam, e cujo desejo eu retribuo. Ou aos dias de Verão em que, lá fora, no jardim de relva crescente, se espraia a rega da manhã (ou, quiçá, da tarde, um pouco atrasada), e aí sabes-me sempre a casa, ao lar que me embrulha em cobertores familiares e rusgas fraternais. Também me sabes ao cansaço, e delicio-me com o teu sabor forte e firme quando deixas as estradas molhadas sob o rasto de acelerados pneus e marcadas travagens, enquanto o caminho que escorre por baixo de mim é o mesmo que um dos teus, que são tantos e todos eu amo como a ti, mas espero chegar ao meu destino e ver-te com o prazer da distância e da ilusão de contacto.

Uma vez senti até um travo doce a morte, ao tranquilo que resta depois das turbulências inesperadas e aos confortos súbitos, e minhas defesas derrubei para ir ao teu encontro, sem a protecção que todos esperam e com a delicadeza dos abraços. Lembras-te? E sabias também a noite, não se se te recordas, sabias às nuvens que não deixam ver as estrelas - mas quem vê estrelas nas cidades ocupadas?

Sabes-me às auto-estradas engarrafas e aos passageiros dos autocarros que nelas vogam, e aos dias em que é forçoso despertar cedo e onde me fazes mais companhia que o amanhecer luminoso. Sabes-me a felicidade e a melancolia, tudo junto num coktail que emerge de uma omnipresença da qual és capaz, não sei eu como.

E quando te inalo finalmente, depois de te cheirar apenas, eau de toilette do mundo, embacias-me com esse teu aroma penetrante que não diria bom ou mau, somente teu, intenso mas suave, inescapável.

[Para o Colinas.]