quinta-feira, 18 de novembro de 2010

chega-me a alma.

perco a caneta mas chega-me a alma.
chega para lavrar o que quero com a tinta do que me desejam.
chega-me, então, para alcançar a noite com o sorriso que guardo,
enrodilhado em recados que tocam todos o âmago
(naquele enrodilhado heterogéneo de saudades)
e é sempre cedo demais, mas chega.
chega para salvar as tristezas para amanhã, é só mais um dia,
hoje é mais um dia, são todos dias iguais mas hoje, sim, hoje,
é diferente.
mais uma vez, antes de ires, e a emoção é mais que inesperada,
falta tão pouco, já está, já foi.
foi mas ficou, que a alma que me chega, na calma antes da tempestade que sou,
guarda o sorriso e os obrigados, nunca gastos de tanto repetidos.
obrigada.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

dorme bem, noite.

fora, lá fora, cheira a serra e a noite.
cá dentro há a tranquilidade doce em que se esconde o ensandecer tardio,
moribundo soberano, déspota intemporal perdido em ruídos vãos.
mas no quarto cansado em que correm as trevas pela luz quebrada,
é pela janela que entra a monotonia serena e sem soberba do dormir do dia,
é pela janela que se evade a noite da rua e vem, suave, leve e ternamente, a mim.

dorme comigo, noite! dorme esse sono que sentes em omnipresença, dorme comigo.
e em ti, enquanto esquecemos o resto e me entras pela janela e foges do mundo,
nos lençóis da minha infância, na cama desfeita de indolência ociosa,
passamos pelo abraço eterno do cansaço perfeito.
dorme bem, noite.  

[Para o Colinas]

domingo, 19 de setembro de 2010

Nostalgia

faltam-me aqui, no calor escorreito e leve, as gargalhadas roucas da tua alma
e os bocejos que tocam os fins das manhãs, do tamanho do teu imenso sorriso.
e todas as discussões são estradas de paciência mal calcorreadas, perdendo-se
enquanto chegamos a lado nenhum entre palavras acesas de teimosia.
outros te diziam o mesmo, a ti que és quem me lembro de não ter,
que guardavas os actos para a gentileza e a acidez para os discursos virulentos,
que aquecias de amor ou frustração com tua impetuosa voz, mas nunca foste tu de ouvir,
ou eu, que é de família esta surdez, memória bem-amada e contraditória, pejada de saudades.
e, não te vendo, sabe que estás entre as alegrias e és lembrado com tanto carinho que dói,
e que a árvore que podaste cresce de ano para ano, mais alta e imponente que nunca.  

[Para o Colinas.]

quarta-feira, 14 de julho de 2010

lá fora

lá fora.
entre os candeeiros acesos para matar as estrelas
e as janelas corridas para não entrar a noite
lá fora.
onde estão os crepúsculos e amanheceres
e o sol e a lua giram pelo fim, exauridos
lá fora.
imersos no vento que é sopro de frestas,
feito de suspiros de vozes embaladas
lá fora.
no lugar onde os acordes de músicas perfeitas
arrancam notas de jubilosa tristeza

lá fora.
lá fora estão todos os caminhos e lá fora perdi-te,
era doce de viagens de casa em casa, sussurros de brisas,
carícias, pecados, sonhos desconhecidos da derradeira.
como pode o mundo ficar para trás quando o carregas no peito?
lá fora é a serventia do silêncio obliterante,
do rodar das engrenagens que te amam a alma.
se a tens.
lá fora perdes o dom da nostalgia pelo da melancolia
e a todas as horas os dedos gastam-se pelo dedilhar de pianos sós.

ao longo dos passos caminha a sombra dos dias felizes,
lá fora.

[ao biscoito]

quarta-feira, 26 de maio de 2010

as cores do mundo

se o mundo tem cores não as vejo,
lavadas pela chuva do amanhã
que te embebeda os sentidos.
tudo é abulia inglória, singela apatia
feita da morta 'sprança,
e o sono dos justos foi em tempos,
agora é dos que ousaram sonhar.
"amar" é palavra vã, pois como se ama
se tudo é o mesmo e é impossível amar tudo?
já não temos idade para lágrimas ou
nuvens cerradas no bolso para dar,
e as apoteoses da ciência tocam outros
que não nós.
caí na repetição
caímos na repetição
caiu o mundo na repetição
e cheira a monotonia,
cheira ao mesmo e ao sempre
com golfadas de inusitado.
quando te afastares para casa hoje
será a última vez
até amanhã.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

do ponto onde te encontras

do ponto onde te encontras vês a borda do mundo,
estendes os dedos e vences a manhã com carícias pagãs.
cresce o dia, vai tarde a vontade, agora, nem todas as vezes
é repouso o sonhar que fazes.
fosse toda a música feita de ti, como a fazes,
e nascerias da abulia que esgrimes como arma de sopro.
sopro, pois que todos os ventos são resquícios de memórias,
e as noites apagam-se com a facilidade de velas murchas.
é desta! toca, sente, ergue a face e roça as nuvens que te aspiram,
milagres antecipados e feitos da erva que te acorda o caminho
durante a manhã que venceste com carícias pagãs.
sê heresia.
sê o cantar mais inocente que a ponta da tua caneta alcançar
e suspira confissões escondidas; ninguém tas saiba que te votam ufano,
vendendor de almas a troco de ingenuidade.
os pecados, sentidos como beijos contraditórios,
são somente papéis banhados no rio de versos perdidos,
lavados da cor pelo ondular do tempo.

sábado, 10 de abril de 2010

Preciso.

preciso de respostas imediatas como o ricochete dos sonhos no mundo,
bruscas, tão bruscas que me tiram o fôlego.
não quero viver na pressa dos segundos, mas as horas são lentas em demasia,
as mais das vezes.
preciso de hipérboles de cor para equacionar as minhas interjeições,
que cobertas não fazem sentido.
preciso do que não dou por egoísmo, quisesse a vida ser justa e
precisaria mais ainda do que posso.
preciso, neste querer imediato e feroz, de todos os sorrisos do mundo,
que os meus não chegam.
quantos me sobrarem usá-los-ei, um diferente cada dia,
que os dias são diferentes para mudar os sorrisos.
dá-me das pedras que escorregam de baixo dos pés,
dá-mas com a chuva na primavera tardia, quando roça o estio,
e não há roupa que cubra as peles secas e aradas.
preciso de esquecer os que me sabem e de olvidar a vida para viver;
la mémoire m'effraie quand je me sens seule et les larmes demandent mon foyer.

quinta-feira, 18 de março de 2010

há dias assim.

hoje a chuva cheirou a chuva.
tirei o riso do âmago e ri, e o riso cresceu na rua larga
sob o plúmbleo céu de quase-primavera.
a chuva que cheirava a chuva, num riscar do limiar das estações,
roçou-me a pele como quem roça o sonho,
num entre-suspiro de aroma a infinito. cheirou-me a chuva
sobre o betão salpicado, naqueles segundos feitos para o mundo.
a sorte crescia-me na língua e o dia fugia de mim, pautado pelos rasgos
de sentido de sintonia com as horas.
foge o dia o tempo as cores, resta o cinzento vivo do céu choroso
e a luz morta do quarto, com paz, que paz, agora que se escoa a sorte da língua.
porque há dias assim, de terna alegria contida no viver,
dias em que a chuva cheira a chuva.

terça-feira, 16 de março de 2010

já gastámos mais que os passos

já gastámos mais que os passos, roemos as palavras, mastigadas no veludo das horas
quando cai a noite. estropiámos o crepúsculo, entre nós; quero culpar-te e saber que
não fui eu a razão. encontrámos a dor na noite, nos olhos vermelhos - antes de choro, que o choro
consola-se.
secam-se as lágrimas, mas a tristeza não esquece. pois que arrependimento este, que tédio supremo,
que desregrado tempo que passou. se fosse um lustro, diria que foi de mais. que nessa noite se rasgaram as últimas amarras,
vogou então o navio das indolentes distâncias, longe no longe é longínquo, perdido, esquecido. não te lembres,
que por mim a lembrança mata. recordar o olvidado é blasfémia, heresia punível com dor, quem a traz sobre ti
és tu.
terias reaberto a ferida se soubesses, inocente nessa tua crença vã? ou a coragem é-te sinónimo de astúcia, e fugir da mágoa é
caminho sereno coberto de luz? luz que nunca procuraste, se não noutros com dias mais cinzentos.
de espelhos são feitas as lágrimas, que te tocam de ti como tu, carícias cálidas correndo contentes, e tu triste, que é da justiça do mundo?
quanto te tocam as palavras gastas na noite, na manhã, madrugada dentro, acompanhadas por música que assim,
nessa voz, nesse corpo, não tem mais significado?
os passos, esses, morreram quebrados, porque nunca foram afinal importantes [ou importaram em demasia]
vaidade, que se perde então? todas as vidas foram minhas, as sílabas rolaram destroçadas,
carpi os dias passados que esqueceste — oh, por que os esqueceste?
por que deixaste para trás tanto, por que ganhaste tão pouco? e se tudo isto fosse mais que um sonho,
um pesadelo mal vivido que não previsse já ao arrumar-te em gaveta cerrada, então mais seriam as lágrimas,
as dores, os prantos corroídos. assim é melhor, suave, chocada e doloridamente, mas sem mais que desilusão.
e eu que queria tanto crescer contigo, eu que era vã na minha descrença escatológica, porque nada
nada tem um fim, mas tudo acaba por fenecer antes de a eternidade chegar.
espera por mim!, grito, mas quê, são palavras, lembro-me, palavras que já gastámos e que me morreram nas mãos.
morte, que trágica, tiras-me o mundo, e afinal, não é preciso morrer para se estar perdido. não quando
os elos são trucidados com a infâmia que cometes, porque nem sequer terias direito a um poema, um poema que escrevo com as palavras que gastámos.
ou talvez tenha sido eu a usá-las, tantas e tantas vezes que lhes arranquei o significado. os passos cansaram o caminho
e nunca mais o tomo, não os mesmos, quero agora trilhos diferentes para outros fins mais belos.
agora que gastámos tudo, que resta? se nem o olhar se sustém porque tenho medo,
medo de quê?
medo de mudança, e agora mudei outra vez, mudaste, se mais tu ou eu não importa, não me percebes.
se acreditasse que fora esta a última vez para mim, sorriria, que os sorrisos são feitos para o fim, para limpar as lágrimas
abrindo covas para escoar as mágoas aquosas.
e cada vez destoa menos, a indiferença que me cobre, mascarada de irritação. quanto mais, mais fácil,
menos doloroso,
e gastarei menos palavras, porque no fim não servirão nem para
viver.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Há palavras que nunca te disse.

Há palavras que nunca te disse.
Palavras, apanágio meu, que são meros percalços,
soluços gastos que a vida me trouxe. Não precisam de ser ditas,
sabe-las sem as ouvir, que as vozes distorcem as almas.

Palavras sem cor, do monótono e opaco branco
que nem sempre se esvai, daquele que é feito da minha indiferença.
São rastos fecundos da nostalgia que me fende, no silêncio triste
da noite a caminho da solene e leda madrugada.

Há palavras feitas de mel.
Meigas, tecidos brocados de saudades, de tempos, de sonhos,
sabem a lágrimas doces tingidas pelo riso, retinindo em cores
que fazem esquecer o doloroso do mundo que nos retém.

Foram quiçá palavras que senti, quebradas pelo não-dizer,
enforcadas pela torrente que morre ao sair;
não digo, não sinto, não sou.
Pois que não seja, de nada serviria ser se as palavras,

pecados revoltos de jamais serem tocados,
são obscuros enleios que nos ancoram à dor,
ao medo de as dizer, de as não proferir, que flutuam na ansiedade
que ao longe recheia as vozes. Dizer, não dizer.

E nas palavras que não te digo —
que nada devemos ter nas mãos
e as palavras são mais que nada,
nas mãos, nos olhos, na boca, —

suspiro os mundos que sonho e crio,
sem nunca tos dizer porque creio, talvez sem fim,
que o silêncio te sabe dizer as palavras que não te digo,
as palavras que nunca te disse.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Mundo lacónico.

Lacónico seria o mundo se o julgasse,
se dos meus braços lhe jorrassem as cores,
se por entre os meus dedos esquecessem,
humanos mortais cansados,
que da vida há mais que sonhos, que dores,
que também seria vida se perdessem
soluços de riso, pousando-os no regaço,
qual flores decadentes que ousei amar.

Desídia desdenhosa tomaria o mundo,
mundo meu que me mentiu;
deixá-lo-ia de pobre, inábil, desdito,
mais cedo conspurcaria de véus o céu escuro
para que as estrelas dissessem que partiu
na distância, moribundo e constrito,
desfeito e feito eterno e exilado perjuro,
senhor um dia do que desejei não desejar.

De silente o clamo, sem desígnios falsos
que tolhem dos pés o chão, que sempre os há,
pejados da ignomínia falsa que é ser,
ser por não ser entre os outros como nós;
não me quedo neste quebranto, pois hora-má
foi aquela em que sonhei deixar de ver,
voltaria atrás agora, gritaria a rouca voz
que do que era nosso nada há a perdoar.

Não será, enfim, de ser humano, criatura insana,
que de o ser somente é opróbrio solene,
canção palmilhada e morta pelo vento da dor,
ansejo liquefeito de trevas pautadas pela alma
lavada de branco, que alvo é tom perene,
rasgada pela vida que a toca sem cor,
antes fosse do ébano que range na noite calma,
tremendo nos dentes-de-leão que sempre quis soprar.