sexta-feira, 27 de março de 2009

Perdemos todos os passos que demos

Perdemos todos os passos que demos
Passos foram-no em tempos, são ecos
Agora não servem mais que memórias.

Serenamente gozámos a juventude
Ficamos com o passado nas mãos
Pelas ruas gastámos os passos.

Deduzimos, pelo que vivemos,
Que não há vida justa nem subtil
Que de secreta não tem ela nada.

E todas as canções que cantámos
Oh, tantas, lembro-me de todas!
Deixaram na língua um travo azedo.

Jogámos as inócuas preces ao chão
E as noites pereceram no tempo quente.
Que visão exausta. Que tirano mundo.

[A todos os que me fazem sorrir.]

domingo, 22 de março de 2009

Soneto III.


Já bastou o tempo perdido em vão
Aperta-se-me de dores o peito
Faz-me me falta o que em tempos foi meu leito
Um dia lá deixei o coração.

Indiferente sou pois desde então
Eterna vivo num corpo imperfeito
Não é já meu ele também, entreguei-to
Lamento que lhe falte o coração.

E agora não resta mais que cinzento
Não sobra em mim mais que o imortal nada
Perdidos o coração e a vida.

Já não há cores; foram-se com o vento
Acabei. Não serei jamais lembrada
Minha alma não encontra lar, perdida.

Nini, que me ajudou.]

domingo, 15 de março de 2009

Perdi-te sob as chuvas.

Perco-te sob as furiosas chuvas de abril, Onde estás, mas é em vão e não te encontro mais. Apalpo pelas ruas e esquinas e vagueio em labirintos criados pela memória ou pela falta dela, sorteio destinos e escondo-me das gotas; porém elas perseguem-me e arrastam-se atrás de mim como eu me arrasto atrás de ti, Onde andas, mas não me ouves e não te encontro mais. Enregelo neste percurso trilhado de apatia porque já não sei há quanto tempo deambulo e o que encontrei até agora, enquanto gasto a garganta e chamo por ti, não sei se alto ou apenas num murmúrio cerrado, Vem ter comigo, mas a voz é rouca e não te encontro mais. Esqueço os nomes as datas as recordações e esqueço o mundo debaixo da chuva teimosa, essa de uma persistência que rivaliza a minha e que me estremece porque não me larga, não me deixa, não é a ela que eu quero, é a ti, Anda agora, não me deixes, mas só oiço a chuva e não te encontro mais. Já corri todos os lugares que eram nossos e todas as ruas onde deixaste o eco do teu riso, todos os cantos onde ficaram as mágoas das tuas lágrimas, Vem, por favor, mas os ecos e as mágoas desvaneceram-se e não te encontro mais.
Perdi-te e agora já não sei o sabor das tuas palavras, a cor das tuas manias ou a suavidade dos teus olhos. Perdi-te, e se fugiste ou se foi sem intenção tua não sei. Perdi-te e jamais agora te encontro, porque te perdi e agora sou eu que me perco sob as furiosas chuvas de abril.

[Para o Colinas.]

quinta-feira, 12 de março de 2009

Jardim de Sonhos.

Olha que tarde tão bela, meu amor. O sol derrete-se sobre as nossas peles que descalçámos para a Primavera; não há aqui lugar para pesadelos. Ficam longe, à distância de um anoitecer sereno e tardio, depois de um pôr-do-sol mavioso. Deixamos por terra, na erva verde que cresceu antes de tempo, perto dos trevos que não garantem a sorte, as mágoas e as iras, que neste momento fustiga-as Zéfiro por tão pouca compreensão.

Cheira a estio sem ainda ter chegado a nós Perséfone; sobe agora, decerto, as escadas dos subterrâneos de Hades, de passos apressados pela saudade da mãe (saudade essa nossa, tão nossa, do que foi e é e nunca do que será). Espera-a Ceres fecunda, mas ainda é cedo, ainda não a liberta o senhor das profundezas.

Que te parece do dia, meu amor? Não preciso de resposta, vogam sombras arbóreas pela tua face mas voga também um sorriso, que belo sorriso, sorriso belo como a tarde. Escuta, fecha os olhos e sente Artémis deslizando pelas frondosas copas em graciosos saltos.

O tempo passa mas temo a noite. Temo mais que a escuridão, temo os olhos cerrados e a consciência perdida, derramando-se pela cidade de infrutuosos recônditos. Estou aqui agora, porém, e agora não há noite, há tu, há eu, há nós. Rogo uma prece silenciosa a Morpheu e peço-lhe que afaste de mim seu vicioso irmão, que de meu sono mantenha Phobetor longe.

Ainda não é noite, e contigo não há pesadelos.


[Dedicatória.]

sexta-feira, 6 de março de 2009

As cores do coração.

A felicidade está pintada pelos cantos.

Subitamente, gostava de ter sido eu a escolher as paletas. Certamente optaria por outros tons. Um pouco mais de egoísmo, talvez uma dose mais pequena de compaixão. Emoções vibrantes de tonalidades claras mas carregadas, para melhor se ajustarem à alegria com que pretendo preencher as paredes.

No tecto colocarei a tristeza, claro.

Deixá-la-ei pender sobre mim e banhar-me com equilíbrio, sem a tornar pesada ou enfadonha, uma pincelada aqui de melancolia, outra ali de mau-humor, combinações encantadoras ornadas com pequenos candeeiros com velas de paz. Se tenho de meter cortinas, para que a luz não entre a jorros e me descolore os sentimentos com desmesurada abulia, talvez escolha umas de cor pacífica, como a tranquilidade ou a calma.

Aos quartos, esses, adequa-se bem a paixão e a solidão, que se equilibram bem numa balança, com esboços de decadência precoce. A cozinha será um antro de eficiência e sabores, deixo-lhe então destinadas a inspiração e a vontade de caotizar.

Por fora, enfim, essa é a cor impossível de definir. Se por dentro pinto das cores que quero o coração, por fora a aparência tem de ser única e uniforme. É cor de alegria a cair por cima de uma camada de apatia.