terça-feira, 16 de março de 2010

já gastámos mais que os passos

já gastámos mais que os passos, roemos as palavras, mastigadas no veludo das horas
quando cai a noite. estropiámos o crepúsculo, entre nós; quero culpar-te e saber que
não fui eu a razão. encontrámos a dor na noite, nos olhos vermelhos - antes de choro, que o choro
consola-se.
secam-se as lágrimas, mas a tristeza não esquece. pois que arrependimento este, que tédio supremo,
que desregrado tempo que passou. se fosse um lustro, diria que foi de mais. que nessa noite se rasgaram as últimas amarras,
vogou então o navio das indolentes distâncias, longe no longe é longínquo, perdido, esquecido. não te lembres,
que por mim a lembrança mata. recordar o olvidado é blasfémia, heresia punível com dor, quem a traz sobre ti
és tu.
terias reaberto a ferida se soubesses, inocente nessa tua crença vã? ou a coragem é-te sinónimo de astúcia, e fugir da mágoa é
caminho sereno coberto de luz? luz que nunca procuraste, se não noutros com dias mais cinzentos.
de espelhos são feitas as lágrimas, que te tocam de ti como tu, carícias cálidas correndo contentes, e tu triste, que é da justiça do mundo?
quanto te tocam as palavras gastas na noite, na manhã, madrugada dentro, acompanhadas por música que assim,
nessa voz, nesse corpo, não tem mais significado?
os passos, esses, morreram quebrados, porque nunca foram afinal importantes [ou importaram em demasia]
vaidade, que se perde então? todas as vidas foram minhas, as sílabas rolaram destroçadas,
carpi os dias passados que esqueceste — oh, por que os esqueceste?
por que deixaste para trás tanto, por que ganhaste tão pouco? e se tudo isto fosse mais que um sonho,
um pesadelo mal vivido que não previsse já ao arrumar-te em gaveta cerrada, então mais seriam as lágrimas,
as dores, os prantos corroídos. assim é melhor, suave, chocada e doloridamente, mas sem mais que desilusão.
e eu que queria tanto crescer contigo, eu que era vã na minha descrença escatológica, porque nada
nada tem um fim, mas tudo acaba por fenecer antes de a eternidade chegar.
espera por mim!, grito, mas quê, são palavras, lembro-me, palavras que já gastámos e que me morreram nas mãos.
morte, que trágica, tiras-me o mundo, e afinal, não é preciso morrer para se estar perdido. não quando
os elos são trucidados com a infâmia que cometes, porque nem sequer terias direito a um poema, um poema que escrevo com as palavras que gastámos.
ou talvez tenha sido eu a usá-las, tantas e tantas vezes que lhes arranquei o significado. os passos cansaram o caminho
e nunca mais o tomo, não os mesmos, quero agora trilhos diferentes para outros fins mais belos.
agora que gastámos tudo, que resta? se nem o olhar se sustém porque tenho medo,
medo de quê?
medo de mudança, e agora mudei outra vez, mudaste, se mais tu ou eu não importa, não me percebes.
se acreditasse que fora esta a última vez para mim, sorriria, que os sorrisos são feitos para o fim, para limpar as lágrimas
abrindo covas para escoar as mágoas aquosas.
e cada vez destoa menos, a indiferença que me cobre, mascarada de irritação. quanto mais, mais fácil,
menos doloroso,
e gastarei menos palavras, porque no fim não servirão nem para
viver.

3 comentários:

Anónimo disse...

Oh...
Às vezes pergunto-me se estás triste e não o mostras...snif...
Mas ao mesmo tempo é um texto muito bonito.

Kath disse...

Obrigada, Nonó. E às vezes sim, mas passa. :D

Patrícia disse...

Textos como este fazem-me pensar se estarás assim triste. E eu não gosto de ver pessoas trsites :/

Isto foi forte. Wow.