segunda-feira, 28 de abril de 2008

Pintura.

Estendeu as mãos, como se quisesse apanhar, entre elas, um rasto de luz que entrava pela janela, naquele final de tarde cansada e evanescente. Sorriu uma mistura de sorriso e esgar, porque a face estava retorcida pela memória de uma solidão presente. A música que tocava mal lhe aflorava os ouvidos, enquanto mirava aquela réstia de brilho que penetrava pelas vidraças, ou talvez eu estivesse apenas a imaginar essa melodia que julgava ouvir. Eu apenas a mirava, observando como ela, tal como o soalho e a cadeira, era banhada por aquela resplandecência poente, uma cortina de luz que se espraiava por sobre ela como manto, ou como, às vezes, a noite cobre o mundo. Suave.

Quedei-me, imóvel, sem conseguir divisar mais que alguma gentileza nela. Porque percebi que ela se sentia só, apesar da minha companhia. E que oca companhia, pensei, uma gargalhada seca ecoando-me pela mente para não a perturbar. Devia estar a escrever, recriminei-me, mas não desviei os olhos da imagem. Fosse eu pintor e faria, naquele momento, um retrato com doces cores, evocando a beleza simples do momento, com seus tons pastéis e coroados de quentes e o sorriso falhado que ecoava pela sala. Talvez, acaso fosse eu músico, conseguisse compor uma música capaz de reverberar pelo mundo, tão bela que relataria, sem palavras, a cena que eu, honradamente, podia ver.

Quase lhe pedi para não se mexer, para se manter assim, segurando aquele instante para a eternidade ou, pelo menos, por mais alguns instantes, para que eu os pudesse absorver, filtrando-os em mim como caixinha guardada no íntimo, retrato silencioso do pôr-do-sol. Pediria também à estrela que não se movesse, que interrompesse a sua queda cadenciada, que não buscasse, como sempre e sempre e rotineiramente, o horizonte abaixo de si. Mas, mesmo ainda antes que pudesse ajoelhar-me, pronto para a minha súplica que rogaria imobilidade ao Tempo, ela desmanchou o seu quase-sorriso, e as suas mãos de criança deixaram de tentar afagar a luz. Quase caí, como se o soalho polido tivesse ruído com um cair de terras, como se a sala à minha volta girasse, abruptamente, ou o sol, ao contrário do que eu desejava, se tivesse apressado a descer no céu, vertiginosamente. Mas não. A sala continuava como antes, o sol ainda empreendia a sua jornada para o horizonte, o soalho ainda sustinha os meus pés e a cadeira onde estava sentado.

Uma pequena lágrima deslizava-lhe pela face, quando ergueu para mim, blasfemo indigno, os olhos marejados. Fiquei quedo, estátua feita homem, e a minha atenção estava centrada na pérola que serpenteava pelo seu rosto, marcando-lhe um trilho, uma mágoa, um sulco molhado de sal.

E foi tal imagem que me ficou guardada da alma, cume da perfeição que eu almejava. Pintura de lágrimas sobre carne.

1 comentário:

Kerhex disse...

Eu também guardo numa caixinha, de marfim polido, imagens dos momentos que passamos juntos^^.
O Ob veio cá tomar café, foi-se embora há bocado, já é tarde :-(.
Vou dormir, boa noite maldosa^^.
Gosto muito muito muito muito de ti!
Beijinho***.